"Para todo o sempre"
Já estava escurecendo e ela se apressou a acender uma vela. Fechou as janelas, todas com taramelas, uma a uma. Depois deu uma vistoria geral nas duas portas, a de entrada e saída. O chão da casa, de barro batido estava devidamente varrido, limpo. As panelas areadas, brilhavam suspensas nos pregos na parede de madeira cinzenta. A mesa já estava devidamente limpa com uma toalha alva de rendinhas e no centro, como vaso, um copo com margaridas. As margaridas de seu pequeno jardim de ambos os lados da porta da frente. Não mais de cinquenta centímetros quadrados de cada lado. O espaço do lado de fora era pequeno, muito pequeno. Não mais que dois metros até se alcançar o portão – nesse espaço ela plantou couve, cenoura, alface e cheiro verde . O portão, de madeira velha, dava para uma pequena ruela de barro, paralela ao trilho do trem. A vela iluminava a pequena cozinha e ela foi até o quarto e trouxe a Bíblia. Abriu ao acaso e leu com a dificuldade que tinha para ler e pela falta da claridade, mas não se esquivava de fazê-lo todas as noites. Mas logo foi para o Salmo Vinte e Três, o que lia todas as noites, infalivelmente, antes de ir dormir. Após a leitura silenciosa, fechou os olhos. Pediu a Deus pelos que a ajudavam tanto: por sua sobrinha Margarida – que a visitava e a ajudava sempre que podia. Por Hilda, que sempre a recebera como uma pessoa da família e lhe enchia a sacola com alimentos básicos, como um cálice que transborda – o pouco que tinha, Hilda dividia com ela. Por fim, lançou um pensamento de agradecimento ao rosto do pastor de sua igreja, que sempre a recebia com um sorriso bonito. O sorriso bonito que ela não tinha mais. Os dois dentes de cima e os três de baixo eram tudo que restavam do sorriso encantador de sua juventude. E também agradeceu pelo dom de ainda poder caminhar pelos dois metros de sua horta verdejante e pela força para trabalhar em faxinas de vez em quando, o que lhe dava uma pequena renda, que juntava ao salário mínimo da aposentadoria. Não casara, não tivera filhos . Fechou os olhos não sem deixar cair uma lágrima. A mesma lágrima de todas as noites. Mas era uma água tranquila, uma água de descanso. Foi para o quarto, com a vela em uma das mãos e na outra, o cajado. A perna esquerda muito mais curta que a outra o exigia. A vida toda. Desde menina. "A Tua vara e o Teu cajado me consolam". Sentiu que era realmente seu o Salmo Vinte e Três.
* a Edília, in memoriam
Lúcia Constantino
Enviado por Lúcia Constantino em 16/12/2015
Alterado em 17/12/2015